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Somos todos delinquentes acadêmicos? Uma análise crítica do papel da Universidade. Sua estrutura burocrática e autoritária fortalece a ordem e o poder

16 de Dezembro de 2011 às 11:59:08

Por: Maurício Tragtenberg
Em 1978, no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em Campinas (SP), Maurício Tragtenberg falou sobre a "delinqüência acadêmica".[1] Ele observou que a universidade não é neutra, mas sim uma instituição que expressa interesses e as contradições inerentes à sociedade. A universidade, porém, tende a obscurecer esse caráter pela afirmação da ideologia de um saber aparentemente neutro, que seria "objetivo" e "científico" e estaria acima dos antagonismos sociais. [2] Enfatizou o caráter classista da universidade. O saber legitimado no campus não é um saber ingênuo, desprovido da influência das relações de poder. Sua estrutura burocrática e autoritária fortalece a ordem e o poder, influencia o corpo docente e discente e é referência para a práxis no campus. Tanto professores quanto alunos reproduzem-na cotidianamente, dentro e fora da sala de aula.

Na universidade predomina o especialista. Ela produz o taylorismo intelectual, com a divisão do conhecimento em disciplinas estanques e a instrumentalização do saber aplicado a fins empresariais e militares. Dessa forma, a universidade submete-se à racionalidade capitalista, transformando-se numa instituição tecnocrática. Sua função é formar os que contribuirão para a manutenção da ordem, fundada no despotismo nos locais de trabalho e no controle político e social.

A universidade reproduz os valores predominantes na sociedade pela seleção e transmissão de conhecimentos legitimados institucionalmente; sua estrutura e pedagogia burocrática contribuem para a formação de indivíduos submissos, servis e desprendidos de qualquer preocupação de crítica social - mesmo nos chamados "cursos críticos". A universidade tende a se desincumbir de qualquer função crítica. Tragtenberg, com ironia, argumenta que quem deseje levar a sério o lema kantiano "Ouse conhecer", terá que fazê-lo fora do campus: "Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade que irão encontrá-los".[3]

Estamos, assim, diante de uma universidade que produz intelectuais sem compromisso ético e social; intelectuais desresponsabilizados diante da realidade social, cuja vinculação com o mundo real se dá pelos interesses econômicos e políticos individuais e corporativos. São especialistas voltados para os seus respectivos "feudos", à cata de financiamentos e recursos materiais que proporcionem status, conforto e as condições para uma boa vida. Não importam as fontes dos recursos e nem as finalidades sociais do conhecimento produzido, mas sim consegui-los. Muitas vezes, tais práticas são encobertas pela retórica do "público". "Em nome do "serviço à comunidade", a intelectualidade se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a "razão de Estado" em detrimento do povo", enfatizou Tragtenberg.[4]

Na disputa dos interesses individuais e corporativos, camuflados sob o discurso da "universidade pública", "interesse público", "bem-comum", etc., os fins justificam os meios. Prevalece "a política de "panelas acadêmicas" de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer", os quais "se constituem no metro para medir o sucesso universitário". Neste universo, "a maioria dos congressos acadêmicos serve de "mercado humano", onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais." [5] Eis a delinqüência acadêmica!

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* Versão adaptada do texto originalmente publicado na Revista Espaço Acadêmico, nº 88, setembro de 2008. Disponível na íntegra em http://www.espacoacademico.com.br/088/88ozai.htm
[1] As citações são de: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção Teoria e Práticas Sociais, vol 1). Ver também a entrevista publicada originalmente no Folhetim, Folha de S. Paulo, 03.12.1978, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/007/07trag_delinquencia.htm
[2] Num texto apresentado no Seminário de Reitores, realizado em João Pessoa (PB), em 1978, Tragtenberg afirma: "A universidade é uma instituição dominante, além disso, ligada à dominação. Até hoje a universidade brasileira formou assessores de tiranos, é o antipovo. Criada para produzir conhecimento, ela se preocupa mais em controlá-lo" (1990, p.55).
[3] Id., p.13.
[4] Id., p.14-15.
[5] Id., p.15.