A presença das mulheres no meio acadêmico no Brasil é escassa nos níveis de pesquisa, especialmente nas áreas de ciências exatas, segundo um estudo que analisou a distribuição as chamadas Bolsas de Produtividade de Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
A pesquisa, publicada em artigo na revista científica "PeerJ", observou a distribuição de mais de 13,6 mil bolsas entre 2013 e 2014 por sexo e área de conhecimento, além da divisão por gênero dos membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), e os projetos científicos que conseguiram alto financiamento no programa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), juntamente com o CNPq.
Do total de 4.859 bolsas no período para áreas de conhecimento dentro das ciências exatas, apenas 976 (20,08%) foram para pesquisadoras. Em alguns casos, as mulheres representam, proporcionalmente, menos de 5% do total de pesquisadores, como é o caso dos bolsistas em engenharia elétrica; são apenas 13 mulheres agraciadas com as bolsas no período, contra 269 pedidos aceitos feitos por homens.
Uma das autoras do estudo foi a professora Jaroslava Varella Valentova, doutora em Antropologia pela Universidade Carolina de Praga, na República Tcheca, e docente no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). "Infelizmente, isso é o que a gente encontra todos os dias, essas desigualdades de gênero. O nosso artigo não é o único que mostrou essa questão", afirmou a professora.
Poucas em exatas
No campo das ciências exatas, todas as 22 áreas de pesquisa possuíam menos mulheres bolsistas do que homens. Em física, por exemplo, houve 101 bolsas de produtividade obtidas por mulheres, contra 806 homens que conseguiram o benefício.
O mesmo padrão não se repete de forma tão notável nos campos das ciências biológicas e nas ciências humanas. Em alguns casos, o quadro se inverte: em enfermagem, por exemplo, foram 165 mulheres com bolsas, em comparação a apenas 8 homens. Na área da psicologia, houve 175 mulheres bolsistas, e 138 homens.
Contudo, em números absolutos, os homens continuam sendo maioria nos três campos científicos: exatas, humanas e biológicas.
- 22 áreas em ciências exatas: 976 mulheres, e 3.883 homens.
- 24 áreas em ciências humanas: 1.531 mulheres, e 1.548 homens.
- 30 áreas em ciências biológicas: 2.349 mulheres, e 3.338 homens.
Para Jaroslava Valentova, essa ausência de mulheres, especialmente no campo das ciências exatas, pode estar relacionado a fatores que começam desde a educação básica, como a falta de incentivo para que as meninas sigam carreiras nesses tipos de matéria.
"Pode ser que a sociedade não apoie as mulheres, ou as meninas, desde a infância. Elas não tem muitos modelos. A gente tem várias outras cientistas, mas quando você olha os livros da educação básica, você vai achar a maioria dos exemplos dos homens na ciência. Isso se repete, aquele padrão estranho que a gente vai ver os modelos masculinos na ciência", destacou.
"Esse é um estereótipo muito difícil de combater, porque todo mundo acha que os meninos são melhores da matemática do que as meninas, mas isso não tem nenhuma evidência".
Outra possibilidade, segundo a docente, é a falta de perspectiva em relação à segurança do emprego em alguns setores da ciência, especialmente pesquisadoras que ainda precisam conciliar a vida acadêmica com a familiar, além de ter que lidar com a questão competitiva do ramo.
"Quando você faz medicina, direito, você tem quase certeza de que vai ter um emprego bom, mas na ciência você nunca sabe. Então, especialmente nos casos das mulheres que tem família, elas querem mais segurança, então esse pode ser um dos fatores. A gente pode especular que a família é um dos fatores que vai atrapalhar essa carreira científica", sublinhou Valentova.
"Outro fator pode ser competitividade. Até os salários estão completamente dependentes de publicações, e os fatores quantitativos de ciências: artigos, pesquisa, número de alunos orientandos, estamos sempre olhando para os números. Os cientistas têm que correr atrás de publicações, orientações, apresentações em congresso. A competição é enorme".
Pesquisa de alto nível
Outro ponto abordado no estudo é a quantidade cada vez menor de mulheres ao ponto que o nível das bolsas de produtividade aumenta. O mais básico (categoria 2), por exemplo, não tem especificação de nível, e são avaliados apenas os trabalhos e orientações nos últimos 5 anos para obtenção de bolsa.
Já a categoria 1A é reservado, segundo o edital do CNPq, para " candidatos que tenham mostrado excelência continuada na produção científica", além de esperar que os pesquisadores tenham "gradual inserção nacional e internacional".
Em ciências exatas, houve 621 mulheres com bolsas de categoria 2, ao ponto que havia 2.139 homens no mesmo patamar. No entanto, no nível mais alto, o número de mulheres na categoria 1A cai para apenas 41, enquanto que 378 homens permanecem na categoria. Em outras palavras, as pesquisadoras representaram menos de 10% do corpo acadêmico no maior nível de bolsas de produtividade.
"Quando o cientista ou a cientista está no começo da carreira, pede as bolsas mais baixas, do nível 2. Neste nível, há menos desigualdade, às vezes mais mulheres do que homens, explicou a professora.
"E depois muda: naqueles níveis mais avançados, tem de repente mais homens do que mulheres, o que pode significar que as mulheres desistem durante a carreira acadêmica ou científica".
O mesmo movimento acontece em outros tipos de apoio financeiro a projetos científicos de alto nível, como o programa em conjunto do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e do CNPq.
Na edição 14/2014, foram 1.161 projetos nas áreas de exatas que obtiveram financiamento nas três faixas oferecidas, começando com menos de R$ 30 mil (Faixa C), até a categoria mais alta (Faixa A), que vai de R$ 60 mil a R$ 120 mil.
No nível de entrada, houve 664 trabalhos aprovados, sendo 172 (25,9%) enviados por mulheres. Analisando a faixa mais alta, a presença das pesquisadoras cai para 20%, com apenas 38 projetos obtendo o tipo de financiamento mais alto.
Soluções
Além de atingir a distribuição de bolsas de pesquisa, a falta de representatividade das mulheres também foi citada no artigo ao examinar a proporção dos dois gêneros entre os membros da Academia Brasileira de Ciência (ABC), fundada em 1916 e com sede no Rio de Janeiro (RJ).
Atualmente, segundo o site da instituição, a Academia possui 994 membros, incluindo cientistas que já faleceram. Deste total, há 862 homens para apenas 132 mulheres.
Para Valentova, um caminho para corrigir a falta de equidade no campo científico no Brasil é não só identificar que existe um problema, mas também trabalhar com políticas públicas específicas que foquem em encorajar e incluir mais mulheres na ciência, além de incentivar as meninas desde a educação básica.
"O primeiro passo é aceitar a realidade, que a gente tem esse desequilíbrio de gênero na ciência. O segundo passo é criar algum órgão oficial que tentaria combater esse número diferente de homens e mulheres na ciência", indicou a professora.
"A gente tem que começar desde criança, pequenininha, mostrar as mulheres que trabalham na ciência, nas construções, naquelas profissões estereotipadas como masculinas, e mostrar que é possível, que tem essa possibilidade e apoiar essa diversidade".
O artigo cita, por exemplo, programas como o Equality Challenge Unity (ECU), que trabalha para apoiar a diversidade para professores e estudantes em instituições de ensino no Reino Unido, e, na Austrália, o SAGE (Science in Australia Gender Equity).
"Em vários países, como Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia, tem um modelo específico de política oficial, nacional, de como incluir e apoiar as mulheres na ciência", lembrou Jaroslava Valentova.
"Se a sociedade quer o retorno adequado da metade da população, a sociedade vai ter que apoiar essa metade adequadamente", concluiu.
Fonte: G1