Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel fez saber a todos os súditos do Império que a partir daquela data estava declarada extinta a Lei da Escravidão no Brasil. Dados recentes do MPT (Ministério Público do Trabalho), no entanto, mostram que, quase 130 anos após a abolição da escravatura, o conteúdo da Lei Áurea é mais um que parece funcionar apenas no papel, ou neste caso, no pergaminho de couro com detalhes em ouro conservado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.
Segundo o MPT, entre 1995 - quando o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo no País - e 2015, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão em território nacional. O número corresponde a quase 10% do total de 700 mil escravos existentes em 1888 em um país com então 15 milhões de habitantes. Como forma de monitorar melhor os dados e responsabilizar os culpados, o MPT inaugurou em maio o Observatório Digital do Trabalho Escravo, uma ferramenta on-line com todos os casos registrados no Brasil desde 2003, ano de lançamento do 1º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.
De acordo com a plataforma, nos últimos 14 anos, 43.428 pessoas foram resgatadas em situação análoga à escravidão no País. Quatro Estados concentram quase metade desses trabalhadores. O Pará aparece na liderança, com 9.853 casos, seguido pelo Mato Grosso (4.302), Goiás (3.716) e Minas Gerais (3.333). Nenhum Estado do Sul do País aparece entre as 10 primeiras posições do ranking, mas, segundo o procurador do MPT em Londrina, Heiler Natali, se engana quem acha que a região é território livre do trabalho escravo. "Muita gente ainda pensa que o trabalho escravo é restrito ao Norte do País, por exemplo, porque lá tem uma incidência maior de casos, mas a situação aqui também é preocupante", alerta.
O Paraná é o 11º Estado com mais trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão. Foram 1.157 desde 2003. Só no último ano, funcionários dos órgãos de fiscalização retiraram 16 pessoas desta condição. O recorde registrado foi em 2012, quando 259 trabalhadores foram resgatados em seis cidades paranaenses. Na média, os dados significam que uma pessoa é resgatada a cada cinco dias no Estado. Santa Catarina é o 13º do ranking, com 860 casos, e o Rio Grande do Sul está em 20º, com 321 resgates. O trabalho no campo concentra cerca de 70% dos casos, mas, segundo o MPT, as irregularidades nos grandes centros tiveram grande crescimento na última década.
Perobal, no Noroeste, é o município com a maior prevalência de resgates. Em 2012, 125 trabalhadores foram retirados de uma plantação de cana-de-açúcar em condições análogas à escravidão. No mesmo ano, outra fiscalização no setor sucroalcooleiro flagrou 92 cortadores de cana na mesma situação em Engenheiro Beltrão (Centro-Oeste), distante 150 quilômetros de Perobal. "No Norte do Estado os resgates ocorrem principalmente no corte de cana-de-açúcar. Já no Sul, há muitos casos registrados no cultivo da erva-mate", expõe Natali. Palmas, no extremo sul, teve 95 resgates.
O procurador observa que as condições de trabalho escravo moderno, em geral, se caracterizam pela precariedade dos alojamentos destinados aos trabalhadores. "Basicamente é o mesmo cenário em todo o País, mas aqui [Sul] temos um agravante: uma pessoa abandonada ao relento próximo à Linha do Equador é uma coisa. Já em uma região fria, as baixas temperaturas podem até acarretar em mortes", argumenta. "Há uns três anos flagramos trabalhadores que se encaminhavam para situação de hipotermia em Pinhalão, no Norte Pioneiro", recorda-se.
O Paraná e outros 14 Estados assinaram, em dezembro do ano passado, um pacto federativo para erradicação do trabalho escravo no País. O acordo foi firmado durante a 33ª Sessão Extraordinária do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). De acordo com a Seju (Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos), o objetivo é promover a articulação entre os Estados nas ações contra o trabalho escravo e aperfeiçoar as estratégias de enfrentamento. A Seju informa também que, para o combate, conta com o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, ligado ao Departamento de Direitos Humanos.
O trabalho escravo está definido no artigo 149 do Código Penal e se configura quando, além de trabalhos forçados ou jornada exaustiva, a vítima está sujeita a condições degradantes de trabalho, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. A pena estipulada para esse crime varia de 2 a 8 anos e multa, além da pena correspondente à violência.
O coordenador do programa de erradicação do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), André Roston, diz que o foco no combate ao trabalho escravo é o afastamento da situação de exploração. "Os trabalhadores resgatados recebem três parcelas de um salário-mínimo de seguro-desemprego e são encaminhados para cursos de capacitação, além de receberem acompanhamento da assistência social", detalha. Entre as vítimas, 72% são analfabetas ou não concluíram o 5º ano do ensino fundamental. Metade tem entre 18 e 30 anos e 94% são homens. Os pardos respondem por 48,3% do total, seguidos dos brancos (32,7%), negros (13,6%) e indígenas (5,2%).
Adilson Santana, coordenador-geral do Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo) do Ministério dos Direitos Humanos, enfatiza a importância do Grupo Móvel de Trabalho, formado por integrantes do MPT, MTE, Polícia Federal e outros órgãos governamentais. Além disso, ele cita a lista suja do trabalho escravo, divulgada anualmente. "O objetivo da lista é tornar públicos os nomes desses empregadores para que, além do constrangimento, as grandes empresas não possam alegar desconhecimento de que seus produtos têm origem no trabalho escravo", comenta.
Fonte: Folha de Londrina