Dando continuidade a publicação da entrevista da Profa. Dra. da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro do Grupo de Trabalho de Política Educacional (GTPE) do ANDES-SN, Olgaíses Maués, realizada durante o 35º Congresso do Sindicato Nacional, repercutimos hoje o posicionamento da docente sobre um tema que tem gerado controvérsia: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ainda em fase de elaboração, a proposta que prevê a reformulação do currículo de todas as escolas brasileiras de educação básica deve padronizar 60% dos conteúdos a serem dados aos alunos dos ensinos Fundamental e Médio. Os outros 40% serão definidos pelas próprias instituições e redes de ensino, contemplando particularidades regionais.
A iniciativa do governo deverá impactar também na confecção de livros didáticos e nos cursos de licenciatura. Nesse sentido, a docente explica que isso acarretará em conteúdos superficiais, com carga horária mínima em determinadas disciplinas.
A Base Nacional Comum Curricular está prevista no Plano Nacional de Educação (PNE), que entrou em vigor em 2014. O prazo final para que o documento esteja pronto e aprovado é junho de 2016, por isso o debate sobre o assunto precisa se intensificado, destaca Olgaíses. A professora fala ainda da articulação para o II Encontro Nacional de Educação (ENE), onde a BNCC estará em pauta. Confira a seguir a segunda parte da entrevista, que aborda também a privatização nas universidades públicas e a flexibilização da Dedicação Exclusiva (DE) trazida pelo Código de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Pergunta – Mesmo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sendo voltada para a educação básica, isso de qualquer forma vai impactar na universidade? Porque a universidade forma os professores.
Resposta – Sim, ai a universidade vai ter que se adequar, apesar de que hoje não tem mais vestibular, mas o ENEM vai vir nessa direção, cobrando esses resultados desse pacote e a formação dos professores. A formação dos professores também está em processo de reestruturação, teve um TR (Texto de Resolução) que já foi discutido nesse Congresso do ANDES sobre a resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação que estabelece as diretrizes curriculares para a formação de professores da educação básica.
P – E já dá pra perceber pra onde se aponta exatamente essa formação que o governo quer, que é uma formação pra se adaptar a essa base?
R – O que a gente percebe é que eles vão começar a chamar os dirigentes dessas instituições de formação de professores para poder moldar também, de tal maneira, que já atenda a essas exigências da base comum. Um exemplo concreto: eu orientei uma tese de doutorado de uma professora da rede municipal de Belém sobre a questão da avaliação externa e foi uma surpresa os resultados do trabalho de campo porque a gente esperava que os professores se rebelassem, dissessem que estão perdendo a autonomia, que agora vem tudo pronto e não, eles estão adorando, porque o planejamento já veio, ‘já sei o que eu tenho que fazer, está tudo organizado’. Hoje já está acontecendo isso porque as escolas estão trabalhando pra preparar os alunos pra fazer a prova Brasil. Nós temos hoje a provinha Brasil, feita já nos 8/9 anos que é pra ver se a criança está alfabetizada; temos a ANA que é Avaliação Nacional da Alfabetização, direcionada a estudantes do 2º ano do ensino fundamental; e temos a prova Brasil que é censitária, não é amostragem, pega todo mundo, feita no 5º ano e 9º ano do ensino fundamental e no 3º ano do ensino médio. Esse conjunto de notas que saem dessas avaliações é que vai contribuir para o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que é hoje o grande parâmetro. Conforme o IDEB da escola, os recursos são maiores. O IDEB foi uma das coisas que essa pesquisa da tese identificou que era usado como troca, ou seja, se você conseguir o IDEB tal nós vamos asfaltar a rua da sua escola. Essa questão é muito séria e hoje já está acontecendo isso que a gente está falando da base comum, está acontecendo de forma disfarçada porque os professores estão se baseando, fazendo simulados de acordo com o que caiu na prova Brasil do ano passado, trabalham em cima desses conteúdos, fazem simulados com os alunos do que cai na prova Brasil que é português e matemática, está entrando ciências, geografia e história agora. As áreas de humanas não saíram do currículo, mas tem uma carga horária mínima. É como eu digo, daqui a 20 anos, talvez até menos, as nossas crianças de hoje, que já serão jovens, não vão saber nada sobre a história da sua cidade, do seu estado e do país, porque isso está sendo dado cada vez com menos informação porque não tem carga horária, ‘isso não cai na prova Brasil então não tem porque a gente perder tempo ensinando essas coisas’. Na prática, portanto, a base comum já está vigorando porque os professores já estão trabalhando todos, no Brasil inteiro, porque a prova Brasil é nacional e os conteúdos, dessa forma, são os mesmos, então eles trabalham com as mesmas informações para preparar esses alunos para a prova Brasil e isso é uma limitação. E o que o MEC diz, ‘não, mas vai ter a parte diversificada, cada estado e município vai ter a possibilidade de incluir disciplinas ou conteúdos que falem da sua realidade’. Mas isso ai é um engodo porque a gente sabe que vai ser uma carga mínima e a ênfase vai continuar como eu acabei de falar, não se tirou história e geografia, mas a carga horária é mínima, então você tem pouquíssimo tempo pra trabalhar e a coisa é superficial. A parte diversificada vai ser isso também, superficial. Quer dizer, o que a gente tem aí, essa uniformização que a base comum quer trazer, a avaliação, e a avaliação vai levar à formação, porque ‘se avaliação foi ruim a culpa é do professor, então nós temos que capacitar o professor’, capacitar é treinar mesmo, pra que ele faça melhor essa questão que ele vai ser cobrado na avaliação. E existem escolas hoje que tem fixado na porta para que os pais possam escolher, ‘essa aqui o IDEB é 5, então é bom, eu coloco meu filho’ e tem escolas que expõe demais o professor no sentido de que aquela turma não contribuiu, por isso a escola deixou de receber recursos , etc. Isso está muito ligado a questão da base dos conteúdos que vão ser ensinados, da avaliação e da formação de professores, ou seja, a formação de professores tem que atender isso, tem que atender a esses conteúdos que formem para essa avaliação. É uma coisa muito imbricada e muito preocupante.
P – Sobre os comitês de articulação do ENE, como ocorre esse processo de fazer nas cidades, depois os encontros estaduais e, posteriormente, o encontro nacional? Como é essa interação nessa forma democrática de participar, mas ao mesmo tempo também difícil porque às vezes vai se esvaziando, pois alguns comitês tem dificuldade de se reunir.
R – A gente tem feito muito apelo para que as seções sindicais do ANDES e as secretarias regionais assumam um pouco isso e tem sido assim, com raras exceções. Essas seções têm puxado, construído os fóruns, não em todo lugar, mas tem acontecido muito via ANDES essa construção. A gente tem insistido, e não está saindo só nesse congresso a recomendação, saiu no congresso passado que era pra se fazer no 2º semestre os seminários preparatórios, no Conad em agosto também saiu a recomendação de que se fizesse no 2º semestre os debates. Porém, como houve greve, essa questão do 2º semestre ficou muito prejudicada porque a nossa greve começou em maio, quer dizer, começou ainda no 1º semestre e foi até metade de outubro, então quando se voltou pra aula, quando se acabou a greve, não tinha mais tempo de você fazer outra atividade, era repor aula. Por isso nós tiramos outra resolução que se faça até abril os seminários preparatórios. Agora a gente tem que insistir muito junto as regionais, a gente manda circular para as seções sindicais estimulando que elas reúnam, que elas façam esse chamamento. Por exemplo, lá no Pará fomos nós que chamamos, temos um grupo bem grande de pessoas que estão hoje fazendo parte desse comitê, mas fomos nós enquanto seção sindical que chamamos para que pudéssemos estar aí fazendo as reuniões. No final de fevereiro, dia 25, vai ser o nosso seminário preparatório. Mas o ANDES vai ter muito esse papel de estimular, nós não temos outra forma.
P – Ainda sobre a Base Nacional Curricular já houve um debate preliminar no congresso e se falou da necessidade do ANDES assumir uma posição mais forte em relação a isso. Inclusive algumas pessoas levantaram a questão de que algumas seções sindicais já saíram na frente. Como é que o GTPE (Grupo de Trabalho de Política Educacional) está trabalhando isso, qual é a ideia, é fazer uma denúncia ou ainda tem que aprofundar mais o debate?
R – Tem que ter urgência nisso. O que acontece é que ai volta à questão da greve, o fato é que a gente ficou muito assoberbado e o GTPE depois da greve fez uma única reunião em novembro, e isso evidentemente retardou e deu acúmulo porque o governo não fez greve, o legislativo não fez greve e todo dia tem um PL, uma PEC que a gente tem que priorizar. E a questão da base comum, não é que a gente não deva tratar disso, mas há prioridades, nós somos um sindicato voltado para educação superior e que tem também na sua base as escolas de aplicação e hoje os institutos federais não fazem parte, fazem parte do Sinasefe, mas nós temos ainda as escolas de aplicação que, portanto, é educação básica e a gente tem que se voltar para essas questões. Mas acabou que por conta da greve e dessa enxurrada de PL’s, como o PL 395 que é sobre a não gratuidade da educação, a cobrança da pós lato sensu e do mestrado profissional e extensão, também o PL da Escola Sem Partido, outra que cria o Fundo Patrimonial, o outro que já é uma lei, que foi a primeira aprovada esse ano, o código de inovação tecnológica, então todos esses assuntos acabaram nos consumindo e não dando tempo pra gente se voltar a questão da base comum e nós estamos atrasados, porque desde setembro que a base foi lançada, ela não foi lançada agora. E a gente pode dizer que de setembro pra cá já tem um tempinho por isso nós temos que elaborar um documento ainda em fevereiro, consistente, analítico, crítico sobre o que representa essa base para que a gente subsidie debates na nossa base de sindicalizados. Infelizmente nós somos muito poucos, e as próprias seções sindicais tiveram dificuldade. Essa última reunião que eu falei que foi em novembro nós tivemos poucas seções sindicais, eu não me lembro de cabeça o número, mas eu lembro que foram poucas que compareceram e não compareceram não é porque não quiseram, são as dificuldades até mesmo financeiras de bancar passagem e hospedagem de uma pessoa em Brasília por dois ou três dias.
P – A senhora avalia, por exemplo, que essa questão da lei de inovação que flexibiliza a Dedicação Exclusiva (DE), casada com a PEC 395 da cobrança na pós-graduação, está abrindo um rombo enorme na universidade pública para a questão da privatização?
R – Eu diria que a PEC 395 escancara, ela possibilita, mas a gente sabe que muitas universidades federais, muitas instituições federais, não só universidades, já faziam essa cobrança da especialização. O ANDES ia em cima, o Ministério Público barrava, mas desde que tivesse uma solicitação, uma denúncia. Ou seja, o que eu quero dizer é que os nossos professores já trabalhavam nessa linha. Porque o que acontece, a gente tem uma carga horária e lá em Belém chamam PIT, Plano Individual de Trabalho, não ia contar no meu PIT, eu tinha que estar as 40h dividida em ensino, pesquisa e extensão e eu aqui fora pegava porque era pago, não entrava pra eu contar como carga horária no meu plano de trabalho. Então isso já vinha acontecendo de uma forma mais velada e agora vai ser de uma forma escancarada, o que é preocupante porque a gente sabe que as entidades privadas vão abrir cursos de final de semana de uma forma que não vai ter controle. A flexibilização da DE também é muito preocupante porque a gente vê, sobretudo, como um caminho pra terminar com a DE. Hoje, desde a assinatura da lei de dezembro de 2012, que mudou o nosso plano de carreira, nós temos o que, hoje vale mais a pena financeiramente você ser 20h, porque se você é 40h a DE é o dobro de 20h, o que financeiramente não compensa. Antes a DE representava em relação a 20h mais de 200%, então isso é uma forma de terminar, de acabar com a DE porque é mais vantajoso ficar 20h e ir fazer outra coisa, porque ganha mais fazendo outra coisa. Isso vai acabar com a concepção de universidade pública que a gente defende, que é uma universidade baseada na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Isso vai se voltar cada vez mais para uma universidade direcionada para ensino, com uma coisa que muitos dirigentes políticos já defendem que é a possibilidade de você ter o que eles chamavam de universidade de excelência, ou seja, algumas universidades que vão fazer pesquisa e essas então são as universidades de excelência e vamos ter os escolões, que são aqueles que não vão fazer pesquisa então não precisa ter DE, DE é pra quem vai fazer pesquisa, é mais ou menos isso.
P – E isso relacionado a luta dos 10% do PIB e da questão do governo destinar boa parte da verba da educação para instituições privadas, porque o Brasil ainda era um dos poucos países, senão o único país se não me engano, da América Latina, que tinha a universidade pública gratuita, então como a senhora avalia que isso vai acontecer?
R – Nós estamos indo na contramão. Na medida que o Brasil começa a privatizar, o Chile, que sempre foi o laboratório das políticas neoliberais - com o governo Pinochet ele passou a ser esse laboratório -, a educação superior era privatizada, e a gente sabe de todo movimento havido em 2015 e que agora se começa a desprivatizar a universidade pública, então a gente está indo na contramão dessa história da América Latina. O que a gente vê é que há essa tendência da privatização, e aí eu volto para uma questão parecida, não é igual, mas parecida, com as OS que estão hoje assumindo a educação básica. Você vai ter ai uma coisa parecida na educação superior que são também instituições que estão recebendo dinheiro público, como é o caso que não recebe, mas deixa de pagar os impostos, como no Prouni, e o que recebe, porque o empréstimo com juros muito menores que é o Fies. Pra vocês terem uma ideia, em 2015 que foi o ano inicial do ajuste, o primeiro corte pra educação foi de R$ 9 bilhões e 700 milhões e depois houve um segundo corte de 1bilhão. Isso impactou nas atividades das universidades, a nossa universidade, por exemplo, teve um corte de cerca de R$ 50 milhões. Nesse mesmo ano em que as universidades tiveram um corte de 9 bilhões, foi repassado, ou seja, para o BNDES fazer empréstimo para o Fies, cerca de 13 bilhões, então eu acho que isso já da a visão de qual é a prioridade do governo. Ele não tem recursos, ele corta recursos das instituições públicas e, ao mesmo tempo, tem recursos via Fies que a gente sabe que a inadimplência está muito alta das pessoas que terminam a faculdade e não arranjam emprego ou arranjam emprego ganhando um pouco mais do salário mínimo e você tem que pagar uma prestação nunca inferior a R$ 500,00, que é uma coisa que vai impactar numa pessoa que está começando a sua vida profissional. Quando o § 4º do Art. 5º do Plano Nacional de Educação abre isso, entra inclusive com uma certa contradição com a meta 20 do PNE, porque ele abre no sentido de que os recursos públicos poderão ser utilizados para creches comunitárias, para o Ciência sem Fronteira, para o Pronatec, ele nomina, ou seja, os recursos públicos já estão colocados no Plano Nacional que poderão ser repassados para esses e outros programas que não são completamente públicos. Isso já é uma abertura e já é uma sinalização muito forte, porque está em uma política de estado que é o Plano Nacional de Educação, já está sinalizando a prioridade do governo, recursos públicos para iniciativa privada, o que vai de encontro a tudo que o ANDES sempre defendeu, recursos públicos para instituições públicas, esse sempre foi o nosso mote, de trazer recursos para as instituições públicas.
Fonte: SEDUFSM