A experiência universitária como uma interdição violenta de direitos (I) - o inferno do acesso. Um relato sobre o higienismo e o cinismo das burocracias universitárias que operam nas universidades públicas do estad
12 de Fevereiro de 2014 às 13:11:23Estudante de Filosofia da Universidade de São Paulo
A Carta Maior recebeu, por meio do Centro Acadêmico de Filosofia da USP (Caf-USP), um relato sobre a estarrecedora situação vivida por um estudante de Filosofia na USP enquanto luta por permanência universitária. O relato destrincha a conduta adotada pela burocracia universitária em relação aos estudantes mais pobres que, como pontos fora de uma reta, passam nos vestibulares das grandes universidades paulistas.
Ao divulgar o texto, os diretores do Caf escrevem: "como não é possível sintetizar a violência sofrida pelo aluno, fazemos um apelo para que acompanhem o relato original".Carta Maior reforça o apelo, republicando o texto integralmente, em duas partes.
Leia, a seguir, o relato. Para acessar a segunda parte do texto, clique aqui.
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Nasci no ano de 1990. Meus genitores contavam ambos 19 anos de idade. Nenhum deles chegou a completar a escolaridade de nível médio e, por conseguinte, nenhum deles pôde frequentar uma universidade.
Quando nasci, minha genitora teve depressão pós-parto e daí engendrou uma série de problemas mentais: depressão, bipolaridade, esquizofrenia... Desamparada pela inexistência de um aparato público de saúde qualificado para lidar com esse tipo de quadro, a sua vida tem se resumido até hoje em um processo de entrar em crise, ser internada, receber alta e depois de certo tempo entrar em crise novamente, ser internada...e assim ciclicamente.
Nesse aspecto, a existência para mim foi uma experiência bastante traumática. Penso que só é cognoscível para aqueles que conviveram ou convivem com pessoas portadoras de transtornos mentais. Os ataques e crises de minha mãe são de natureza muito violenta; eu e outras pessoas já fomos perseguidos e atacados por ela. Uma série de casos que remontam àquelas que estão entre as piores experiências da minha infância.
As famílias de meus genitores sempre foram apartadas por conflitos, sobretudo por conta da doença de minha mãe. De modo que nos dias de hoje não há nenhum contato entre ambas.
Meus pais se separaram logo após meu nascimento, e eu vivi boa parte de minha vida com a família de meu pai. Isso se deu tanto por conta da doença de minha mãe, como por conta da falta de condições de sua família para amparar outro membro; a família de minha mãe vive até hoje numa casa pequeníssima, pela falta de espaço dormem todos no mesmo quarto. Ocasionalmente eu visitava a família de minha mãe. Dessa maneira eu vivi, sem muito ponto fixo, circulando entre os bairros de Campo Limpo e Jardim Piracuama (próximo de Capão Redondo), regiões periféricas da cidade de São Paulo.
O único membro com quem mantive mais proximidade e por quem desenvolvi afetos na família de meu pai foi sua mãe, minha avó paterna. Morávamos então, além de mim, minha avó, meu pai, e três de seus irmãos na mesma casa. Por volta de meus 14 anos a mãe de meu pai foi diagnosticada com câncer e morreu não muito tempo depois, o que desestruturou completamente a família. Um dos irmãos de meu pai foi embora. Desse período em diante, episódios de violência física e verbal eram constantes, intervalados por uma convivência apática.
Frequentei a escola pública durante toda a vida. Terminei o ensino médio aos 17 anos e comecei a trabalhar, mas nunca desenvolvi uma profissão. A maioria dos membros de minha família não teve acesso ao ensino superior; dos que tiveram, sei que nenhum frequentou uma universidade pública. Assim a primeira realidade que me foi apresentada foi aquela do trabalho - trabalho precarizado (meu último emprego de carteira assinada foi numa empresa de telemarketing, um salário de 545 reais; antes disso trabalhei na portaria de um condomínio de classe alta, na região do Ipiranga - possivelmente a moradia de algum uspiano).
Por volta de meus 18-19 anos meu pai saiu de casa para constituir outra família. Daí por diante vivi por conta própria. Com a saída de meu pai os conflitos se aprofundaram entre mim e seus dois irmãos: a violência física da agressão, da pancada, da discussão e do convívio apático - não tenho analogias ou experiências para expressar o que se configurou ali. Os abusos que vivi e sofri nesse período de minha vida estão para além do que posso relatar ou mesmo processar. Viver em um lugar onde cada um vive por si só é um processo desumanizante; da ocasião de precisar do básico, precisar comer, precisar de um produto de higiene ou limpeza, e em sua própria casa as pessoas esconderem-nos de você... como descrever isso?
Eu tentei sair de lá. Cheguei mesmo a me mudar, mas perdi o emprego e não pude manter o aluguel. Vivi na casa de minha avó materna por um tempo, dormindo num colchão na sala - o único espaço disponível, além de uma porta de um velho guarda-roupa, para guardar roupas e pertences. Como a vida na casa de minha avó estava extremamente precarizada, e como era também um lar repleto de conflitos - um lugar pequeno, com todas as pessoas dormindo no mesmo quarto, a doença de minha mãe... - fui compelido a retornar para onde morava através de uma complicada mediação de meu pai com seus dois irmãos. Isso se deu entre 2012 e 2013.
Quando saí do ensino médio (estudei numa dessas escolas que se assemelham muito a um presídio) não tinha nenhuma noção do que era uma universidade ou o que era a universidade pública brasileira, das suas possibilidades e da possibilidade de um tipo diferente de vida da qual eu vinha levando. Ocasionalmente alguns livros vieram parar na minha mão e eu os ia lendo displicentemente; tive contato com o livro de uma professora do departamento de Filosofia da USP e foi através dessa leitura que eu encontrei os meios de articular pelo discurso certa inclinação de espírito que - penso que é assim para alguns casos - leva os alunos para esse ramo do saber humano.
Foi no ano de 2012 que comecei a frequentar um cursinho popular. E foi aí que comecei a ter noção do que era a universidade pública e a USP. Devido ao meu conturbado retorno à casa da família de meu pai, e a uma série de outros fatores (eu havia perdido emprego, não ia conseguir mais frequentar o cursinho) e entrei num severo processo de depressão. Por volta do meio do ano tentei cometer suicídio - fui "salvo" pelo Estado, como atesta esse texto, todavia tal Estado declara direitos à Educação, Moradia, Transporte, etc. e acaba por interditar a consumação desses direitos (ou pelo menos os interdita através de seus agentes). Tomei antidepressivos por um tempo e com o auxílio de professores e amigos consegui certo nível de estabilidade para poder voltar a frequentar o cursinho.
Como não tinha emprego nem dinheiro, me concederam uma bolsa de estudos integral. Daí por diante minha rotina diária era a seguinte: eu caminhava todos os dias do bairro do Campo Limpo (onde eu morava) até a casa de minha avó materna no Jardim Piracuama e lá almoçava, pois não tinha o que ou como comer em casa. Como eu não tinha dinheiro, um irmão de minha mãe emprestava seu bilhete único do trabalho para que eu pudesse acompanhar o cursinho, então eu ia pro cursinho dois ou três dias por semana assistir as aulas que eu achava as mais essenciais (primeiro porque eu não tinha dinheiro para pagar o ônibus todos os dias, segundo porque era um mal-estar espoliar dessa maneira um irmão de minha mãe que precisava de seu bilhete único para ir trabalhar) e estudava o resto por conta própria.
No cursinho era comum - éramos, somos todos fodidos -, que um ajudasse ao outro: se um levava marmita, dividíamos; se precisávamos de dinheiro nos juntávamos; circulávamos entre nós as obras literárias cobradas pela FUVEST pois não havia cópia para todos e assim por diante. Fico feliz por ter criado laços com essas pessoas, hoje grandes amigos, o mais próximo do que posso chamar de família, e também por tê-los como companheiros hoje na USP - só nós sabemos o veneno que foi transpor as barreiras para entrar aqui.
Eu consigo entender que as pessoas amem suas famílias, que criem laços de afeto com seus pais, irmãos, primos, tios, avós, e assim por diante. Especialmente se essas pessoas vêm de extratos mais altos das classes sociais. Mas para mim a instituição familiar, a Família com "F" maiúsculo, é o que há de pior; é a comunhão na desgraça e na miséria sociais pois não há condições de subsistência concretas para quem as busca na cidade de São Paulo; é onde o conservadorismo é mais conservador, o racismo é mais racista, a homofobia é mais homofóbica, o machismo é mais machista... enfim, o reinado da ignorância e estupidez humanas por excelência. É dessa maneira que a experiência familiar, para mim, se resume em um severo ressentimento e em um ódio fratricida.
Prestei o vestibular e passei em três universidades públicas, provando estar em paridade de ignorância com os outros candidatos aprovados. Optei pela USP, no engodo do discurso da "melhor universidade da América latina" (melhor pra quem?).
Assim foi o inferno do acesso. Começou, então, o inferno da permanência.
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Leia aqui a segunda parte: O Inferno da Permanência
Créditos da foto: spresidênciaartística