Desenvolvimento profissional docente e intensificação do trabalho: viver ou sobreviver?
07 de Fevereiro de 2017 às 15:24:07Resumo
O desenvolvimento profissional docente é analisado como processo humano concreto, nos marcos da totalidade do modo de produção capitalista. O tema justifica-se pela constatação de que, na atualidade, a política educacional para o ensino superior contempla os ajustes da agenda neoliberal impostos por organismos financeiros internacionais, que se traduzem em exigências de um novo perfil docente, afetando o fazer e o ser professor. O estudo sinaliza que as exigências impostas ao docente do ensino superior resultam na intensificação insustentável de atividades e tarefas que restringem as possibilidades de o docente usufruir normalmente da convivência familiar e social, pois o trabalho se torna uma questão de sobrevivência.
Palavras-chave: políticas de avaliação; ensino superior; desenvolvimento profissional docente; formação continuada; intensificação do trabalho docente.
Abstract
Teacher professional development and intensification of work: living or surviving?
Teacher professional development is analyzed as a concrete human process, in the framework of the entire capitalist mode of production. The theme is justified by the fact that, at present, the educational policy for higher education includes the adjustments of the neoliberal agenda imposed by international financial institutions, which are translated into demands for a new teacher profile, affecting the doing and being a teacher. The study indicates that the requirements imposed on the teaching in higher education result in unsustainable intensification of activities and tasks that restrict the teachers’ possibilities to normally enjoy family and social life, because the work becomes a matter of survival.
Keywords: assessment policies; higher education; teacher professional development; continuing education; intensification of teaching.
Introdução
O objetivo do presente artigo é analisar o desenvolvimento profissional docente (DPD) como processo humano concreto, nos marcos da totalidade do processo de produção capitalista. Trata-se de um tema que tem se constituído em objeto de preocupação no meio acadêmico, por seus desdobramentos e implicações não só no processo de formação inicial e continuada de professores, mas, principalmente, nas condições de trabalho e na vida pessoal, familiar e social dos docentes para atender às exigências impostas por instituições reguladas pela ótica mercadológica.
O texto está estruturado em dois eixos. No primeiro apresentamos o desenvolvimento profissional docente no contexto das políticas públicas educacionais, explicitando a influência e as determinações das políticas externas de avaliação na política educacional brasileira do ensino superior para fundamentar a discussão sobre as exigências e os desdobramentos em relação ao exercício da função docente. O segundo momento é dedicado à discussão sobre a intensificação do trabalho docente, com a análise desses desdobramentos e exigências que submetem o docente do ensino superior a uma intensificação insustentável de atividades e tarefas acadêmicas.
Finalizamos com algumas reflexões sobre a relação DPD e intensificação do trabalho docente, com a finalidade contribuir para o debate sobre a importância da formação continuada no desenvolvimento profissional docente e o que ela representa nos marcos da atual política neoliberal que restringem as possibilidades de o docente usufruir normalmente da convivência familiar e social, pois o trabalho se torna uma questão de sobrevivência.
O desenvolvimento profissional docente (DPD) no contexto das políticas públicas educacionais
A abordagem do tema exige algumas considerações iniciais para sua compreensão. É oportuno destacarmos que, apesar de uma preocupação maior com o DPD no Brasil, desde as últimas décadas do século passado até a atualidade, o estudo e o debate neste campo são pouco pesquisados. No nosso entendimento, a preocupação com o DPD surge em decorrência de dois acontecimentos que afetaram os países em escala mundial: 1) a revolução da robótica, da microeletrônica ou da informática; e, 2) a crise estrutural do capital.
A entrada e o avanço das novas tecnologias e da internet no Brasil, a partir da década de 1980, desenha um panorama com novas formas de organização do trabalho. Este novo modelo caracterizava-se pela integração e pela flexibilidade, baseando-se na racionalização sistêmica, substituindo a base técnica e eletromecânica por uma base microeletrônica, gerando o fenômeno da automação, com outro perfil de trabalhador, segundo a lógica da reestruturação produtiva, da produção enxuta, exigindo iniciativa, autodisciplina, responsabilidade, flexibilidade, interiorização do controle e espírito de equipe.
Para a compreensão do redimensionamento da educação sob uma nova ordem, é necessário destacar as implicações dos desdobramentos das transformações e do reordenamento da sociedade capitalista mundial na busca de saídas para superar a crise estrutural do capital, crise que teve início na década de 1970, como consequência da crise do modelo de Bem Estar Social (Welfare State).
Para se “adaptar” a essa nova ordem mundial, o Brasil promoveu uma série de reformas no Estado, segundo a agenda neoliberal, sob o comando de organismos financeiros internacionais, a partir de medidas que constaram no decálogo elaborado em 1989 por economistas do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do tesouro americano, conhecido como Consenso de Washington.
Entre essas medidas estão a defesa da flexibilização do processo produtivo; da desregulação e liberdade do mercado; da valorização das desigualdades; e do Estado Mínimo. Vale ressaltar, entretanto, que foi a tese do Estado Mínimo, formulada por Friedrich Hayek (1994), em O caminho da servidão, de 1944, que sinalizou o rumo das reformas na agenda neoliberal, considerando indesejável qualquer norma que cerceasse uma completa liberdade de mercado.
Assim, o Brasil aderiu a essa tese, que eximia o governo da responsabilidade com os gastos sociais, assumindo este a função promotora e reguladora do desenvolvimento, conforme aponta o documento do então Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare): “o Estado abandona o papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se no papel de regulador [...]” (Brasil. Mare, 1997, p. 2).
Em relação às instituições de ensino superior (IES), tivemos a expansão do setor privado e também as exigências do Estado Avaliativo. Sob as determinações de políticas de avaliações externas foi criado um sistema nacional de avaliação para todos os níveis de ensino, regulado por indicadores de qualidade/excelência, tendo como objetivo avaliar a qualidade do ensino e o trabalho do professor. A partir daí, as IES implantaram programas de DPD, de forma institucionalizada ou não, ofertando cursos sistemáticos ou esporádicos, oficinas, palestras, seminários etc., com o objetivo de suprir as deficiências da formação didático-pedagógica de um número expressivo de professores.
A implantação desse sistema de avaliação externa provocou o debate nacional na categoria docente, que passou a se manifestar sobre sua validade ou não como política educacional. As críticas apontaram para duas posições distintas:
De um lado tivemos a crítica fundamentada na forma como ele foi determinado, via exigência de organismos financeiros internacionais, sua concepção nos marcos mercadológicos, sua utilização como ranqueamento para promover a propaganda de instituições de ensino no mercado; no incremento do racionalismo técnico em detrimento da formação crítica do indivíduo, entre outros aspectos. Por outro lado, resguardando e promovendo a superação de todas essas críticas, tivemos a defesa da importância da avaliação não só em larga escala, como também da avaliação institucional e da aprendizagem, como forma de identificar fragilidades no campo educacional para ser possível a intervenção na qualidade do ensino, sob a ótica da avaliação formativa. (Quixadá Viana, 2016 – no prelo).
Não poderíamos deixar de ressaltar outro ponto importante sobre o desdobramento da privatização que se refletiu na elevação do número de IES no Brasil, de diferentes tipos e algumas de qualidade questionável, exigindo, consequentemente, um número bem mais elevado de professores.
Foi nesse contexto que teve início a preocupação e o investimento de IES com a formação do professor, para responder de forma positiva às exigências cobradas, buscando nos programas de DPD uma possível saída.
A concepção de desenvolvimento profissional docente
Veiga (2012, p. 16) entende “desenvolvimento profissional docente como um processo individual e coletivo que se concretiza no espaço de trabalho do professor e que contribui para a apropriação e/ou revisão de concepções e práticas pedagógicas”. Ao explicitar essa concepção, Veiga recorre a Imbernón (2009), destacando que o conceito de “desenvolvimento” acompanha o processo de formação inicial e continuada do professor, sendo, portanto, inconcluso, acontecendo em um contexto concreto.
No âmbito legal, a Lei nº 9.394/1996 – que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB) –, no art. 66, indica que a formação do professor no ensino superior acontecerá em programas de pós-graduação stricto sensu, em cursos de mestrado e doutorado, por meio da disciplina Didática da Educação Superior ou outra equivalente. Sobre este ponto, avaliamos que apenas a exigência dessa disciplina com carga horária em torno de 60 horas-aula não é suficiente para proporcionar uma formação didático-pedagógica de qualidade satisfatória.
Mesmo compreendendo a importância dos pontos aqui apresentados em relação ao investimento de IES no DPD, consideramos digno de nota destacar que algumas instituições colocam no professor a responsabilidade com sua formação continuada, não liberando carga horária para que ele curse mestrado e doutorado; outras proporcionam oficinas, seminários, cursos de curta duração, dentro e fora da instituição, de forma presencial ou por meio da educação a distância (EaD) sem contar na carga horária do docente; e também há aquelas que apresentam programas de DPD institucionalizados.
Programa de DPD: objetivo da proposta
O Programa de DPD surgiu como resposta à necessidade de melhorar o desempenho didático-pedagógico do professor de IES, em função de fragilidades na formação inicial de muitos docentes que acabam por comprometer a avaliação externa da instituição.
É oportuno abrir parênteses para lembrar que a problemática na fragilidade da formação inicial em relação ao desempenho didático-pedagógico do professor não é objeto de discussão aqui, mas é relevante destacar que uma de suas causas deve-se ao aligeiramento nessa formação devido à proliferação de cursos de natureza questionável que surgiram para atender à demanda do mercado.
Por uma ou por outra razão, ou por ambas, é que várias IES no Brasil – públicas, privadas, confessionais e comunitárias – implantaram Programas de DPD. Entretanto, cada uma delas tem sua própria história de concepção, implantação e desenvolvimento do seu programa, embora seja ponto norteador a preocupação com a qualificação didático-pedagógica dos docentes.
Intensificação e precarização do trabalho docente
Concepção e contextualização histórica da intensificação do trabalho
Para a abordagem da intensificação do trabalho docente, consideramos importante partir do entendimento da conceituação dessa expressão: Chama-se intensificação do trabalho aos processos que resultam em maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados. Em síntese, mais trabalho (Dal Rosso, 2006, p. 70).
Oliveira et al. (2002, p. 56-57) avaliam que a exigência de mais tempo de trabalho do professor, “[...] se não aumentado na sua jornada objetivamente, acaba se traduzindo em intensificação do trabalho, que o obriga a responder a um número maior de exigências em menos tempo”. Nesse sentido, a elevação da carga de trabalho no cumprimento da mesma carga horária na jornada de trabalho gera uma sobrecarga que intensifica as atividades da docência, criando uma exigência legal de um volume excessivo de atividades, bem como das condições objetivas e estruturais da reorganização do tempo e espaço no ambiente educacional.
Apple (1995) e Hargreaves (1998) entendem a “intensificação do trabalho docente” como um processo de racionalização e controle do trabalho docente. Os autores balizam suas afirmações tendo como referência a organização do processo de trabalho capitalista e a administração científica do trabalho. Apple (1995, p. 39) afirma que a intensificação “representa uma das formas tangíveis pelas quais os privilégios de trabalho dos(as) trabalhadores(as) educacionais são degradados”.
Podemos inferir, a partir das colocações de Apple, que essa intensificação se consolida por uma real e crescente demanda de novas atribuições, pela falta de tempo para as atividades mais básicas da vida humana e pelo sentimento de cansaço crônico dos trabalhadores intelectuais em função do excesso de trabalho.
Segundo Dal Rosso (2006), o trabalho e as relações sociais que dele advêm contribuem de forma significativa na determinação da relação política, cultural e educacional de uma sociedade, bem como possui o sentido criador e transformador do homem. É por meio do trabalho que o homem produz e reproduz a sua existência e, de acordo com o seu contexto, assume características diversas, que dependem da construção histórica da cada sujeito social.
Silva e Barbosa (2010) afirmam que existem, historicamente, movimentos de ampliação e de redução da intensificação do trabalho e esses dependem da correlação de forças na luta entre capital e trabalhadores, classe burguesa e classe trabalhadora, em um processo histórico no qual ocorrem diferentes graus de intensificação do trabalho coletivo. Uma vez conceituada e contextualizada a intensificação docente, passamos, a seguir, a dialogar em torno das condições de trabalho e intensificação.
Condições e intensificação do trabalho na docência
Para melhor compreensão das condições de trabalho e dos fatores que geram a intensificação em relação à educação, os pressupostos teóricos no presente artigo serão delineados considerando as seguintes categorias: trabalho; condição docente; profissão docente; carga de trabalho; e intensificação do trabalho docente.
Frigotto (2002, p. 31) afirma que “o trabalho humano, compreendido em sentido ontológico, está intrinsecamente relacionado à produção de nossa existência como sujeitos sociais [...]”. Para o Frigotto (1998, p. 28), “[...] o trabalho em primeira instância é criador da condição humana e este o transforma em atividade laborativa, permeado pela alienação, materializando-o como mercadoria e força de trabalho”.
O trabalho como categoria central da formação do ser humano é evidenciado por Fantini, Silveira e Rocca (2010) como “condição docente”, sendo esta um estado de processo social do ofício docente. As condições de trabalho docente são intencionais, uma vez que carregam efeitos políticos, sociais, culturais e econômicos concretos no campo das condições de trabalho. Por isso, é importante retratá-la a partir de uma perspectiva histórica, pois se trata de um dos ofícios mais antigos da sociedade moderna.
Arroyo (2007, p. 192), por sua vez, é categórico ao afirmar que “[...] a história concreta, os sujeitos concretos que vivenciam a docência e as formas de trabalho têm sido desconsiderados [...]”. Inferimos que existem formas concretas de viver a docência, sendo essa vivida por sujeitos coletivos, históricos, contextualizados em uma perspectiva sócio-histórica. A partir de uma perspectiva histórica real, esse autor compreende “condição docente” como “produção docente”, essa em permanente conformação, sendo necessária uma desmitificação do docente para uma escola e um contexto real.
Gimeno Sacristán (1999) define profissão docente considerando todo um aporte “cultural intrínseco” ao seu campo profissional. Trata-se, segundo o autor, de uma semiprofissão, uma vez que é regulada por coordenadas políticoadministrativas, bem como se condiciona a sistemas educativos, organizações escolares nas quais está inserida em burocracias e prestação de contas constantes às autoridades.
Essa lógica do trabalho docente, condicionado a diretrizes alheias às condições concretas de trabalho acabam por secundarizar a profissão. Corroboram essa ideia Lüdke e Boing (2004, p. 1.160) quando afirmam que a profissão docente apresenta “[...] sinais evidentes de precarização [...]” e apontam que “[...] não é difícil constatar a perda de prestígio, de poder aquisitivo, de condições de vida e, sobretudo, de respeito e satisfação no exercício do magistério hoje”.
Após essa exposição geral sobre as condições e a intensificação de trabalho na docência, passamos a dialogar sobre essas condições no contexto da academia.
Intensificação do trabalho docente na academia
Dal Rosso (2008) evidencia que “o mercado de trabalho flexível exige dos trabalhadores a ampliação das suas atividades desenvolvidas”, e essas, na maioria das vezes, são mediadas pelas tecnologias, que permitem/induzem a extrapolação do espaço de trabalho, quer seja da escola, quer seja da universidade, e da carga horária do professor universitário que trabalha online. Outras exigências também se fazem presentes na atuação profissional desse trabalhador da educação, quais sejam: ser um “trabalhador polivalente e versátil, proativo no processo do trabalho, com envolvimento físico, emocional e cognitivo no desempenho de suas funções laborais”.
Esse contexto de envolvimento/exploração é um processo de intensificação do trabalho docente no qual “a condição pela qual requer-se mais esforço físico, intelectual e emocional de quem trabalha com o objetivo de produzir mais resultados (produto), consideradas constantes a jornada, a força de trabalho empregada e as condições técnicas” (Dal Rosso, 2008, p. 42).
É possível inferir que, a partir das evidências da literatura, a universidade pública passa por uma redefinição da sua função social e vivencia um processo de privatização do conhecimento, a partir da racionalidade exigida do mercado neoliberal, aproxima este ente público do mercado, trazendo uma conotação empresarial, segundo a qual “a qualidade foi substituída pela produtividade e o saber pelo custo/benefício” (Rodriguez; Martins, 2005, p. 50). Assim, o produtivismo acadêmico, presente especialmente nas instituições de ensino superior públicas, é resultado das políticas mercantilistas, que negam a educação superior enquanto direito social e concebem-na como mercadoria. (Farias; Guimarães, 2013).
Silva Junior, Sguissardi e Silva (2010) enfocam em sua produção várias funções de competência da categoria dos técnico-administrativos que passaram a ser assumidas pelo professor, enfatizando as funções atribuídas ao professor-pesquisador. Os autores citam três exemplos:
1) os muitos pareceres emitidos são feitos diretamente, via eletrônica, com agências de fomento ou com revistas [...];
2) o preenchimento de planilhas de notas de avaliação dos alunos online; e
3) a apresentação do programa da disciplina online, por meio de formulários eletrônicos que “obrigam” o professor a apresentar com rigor seu objetivo e estratégias para o curso que ministrará. (Silva Junior; Sguissardi; Silva, 2010, p. 19-20).
Outro fator que gera a intensificação do trabalho docente na educação superior resulta da crescente ampliação das matrículas em graduação, envolvendo a EaD, fato que aumenta a relação aluno-professor e, consequentemente, intensifica o trabalho.
Paula (2015, p. 104) chama atenção para o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que provocou uma expansão no número de matrículas e cursos de graduação, mas que não garantiu uma correspondente contratação de docentes. Essa expansão gerou também uma intensificação do trabalho docente.
Fica claro que essa intensificação torna-se mais perversa principalmente para os professores que atuam na pós-graduação stricto sensu e vivem sob o controle avaliativo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que detém o controle sobre o sistema de fomento. É uma lógica que exige um crescente aumento da produtividade dos professores, que é controlada por meio de processos avaliativos, em geral externos, que focam, basicamente, na valorização do produto. Isso gerou, nas últimas décadas, um aumento dos problemas de saúde relacionados à profissão docente, dentre os mais comuns apontados pela literatura atual estão ansiedade, incertezas e sofrimentos psíquicos.
Autores como Codo (1999), Frigotto (2002) e Dal Rosso (2006) mostram que essas doenças resultam do acúmulo da carga de trabalho, oriunda do aumento da jornada em função das exigências legais e profissionais que recaem sobre os professores e pela necessidade de sobrevivência.
Relacionaremos, a seguir, o DPD e a intensificação do trabalho docente para concluirmos nossas considerações.
Finalizando: a relação DPD e intensificação do trabalho docente: viver ou sobreviver?
Nos termos até aqui expostos, é possível identificar a preocupação com o desenvolvimento profissional docente. A implantação de programas dessa natureza em diversas IES no Brasil teve como fator determinante o desdobramento do cenário desenhado no âmbito mundial e global provocado pela revolução da informática, da robótica e da microeletrônica e pela crise estrutural do capital, que afetou as formas de organização do setor produtivo e o papel do Estado com a política do Estado Mínimo.
Na ótica do capital, o trabalho docente é determinado pelas mesmas contradições do sistema, sendo, da mesma forma que os demais setores produtivos da sociedade, forçado a acompanhar a nova ordem da cartilha neoliberal, considerando a especificidade de seu processo de trabalho e sua natureza não material. Para Kuenzer (2009), essa condição é responsável, inclusive, pelo sofrimento no trabalho, sendo motivo de doenças ocupacionais.
Assim, o processo de exploração ao qual o trabalhador é submetido para atender positivamente às expectativas de recomposição do capital vem afetando significativamente as condições de vida profissional, social e familiar e a saúde física e mental do professor, situação agravada pela crescente desvalorização do magistério, materializada na precarização das condições de trabalho e sobrecarga de trabalho.
O DPD, compreendido como um processo individual e coletivo que extrapola a formação inicial e continuada – que acontece no contexto concreto –, intrinsecamente relacionado à profissionalização, ao mundo do trabalho docente, à carreira profissional, às experiências na carreira e à história de vida do professor, ao apresentar também programas institucionais em muitas IES, traz significativa contribuição no processo de formação didático-pedagógica do professor.
Encontramos, na literatura, alguns estudos sobre as implicações da intensificação do trabalho docente nas IES, sendo estes mais direcionados à exploração do produtivismo imposto aos docentes dos programas de pós-graduação, ou seja, no âmbito da formação continuada.
Em relação ao professor que atua somente no ensino de graduação, temos algumas especificidades entre os que atuam em instituições públicas e privadas. Nas instituições públicas, os docentes da graduação têm resguardado o direito de ministrarem o mínimo de 8 créditos (aulas), situação que se apresenta no contexto legal, mas a maioria trabalha com 12 ou mais créditos por semestre letivo. Também por força de lei, para que esse sujeito tenha uma carreira e as progressões necessárias, ele precisa atuar, além do ensino, na pesquisa, na extensão e na gestão.
No que se refere à pesquisa, os docentes veem-se obrigados/pressionados a participar de grupos de estudos, a elaborar e desenvolver pesquisa e/ou ações de extensão. Esse trabalho quase sempre é feito sem fomento e, além do tempo necessário, ainda gera gastos financeiros com o processo de desenvolvimento e de apresentação dos resultados da pesquisa realizada, bem como o custo de despesas relativas à participação em eventos para divulgarem os resultados de seus trabalhos de pesquisa e/ou extensão. No âmbito da gestão, os docentes de instituições públicas estão imersos em diversas comissões, são obrigados (respeitando uma escala) a emitir pareceres sobre o processo de carreira docente de colegas e pareceres para processo de ensino, pesquisa e extensão de seus pares. Ressaltamos que esse trabalho demanda um tempo significativo de leitura e construção de um parecer circunstanciado legalmente e, é claro, todo esse trabalho, na maioria das vezes, é feito em casa no tempo que seria de ócio e de lazer, constituindo-se em trabalho excedente, na exploração de mais-valia.
Vale destacar que fazer parte de grupos de pesquisa e/ou extensão, bem como de comissões diversas, demanda, também, a participação presencial e/ou via meios eletrônicos em várias reuniões. Outro fator que merece ser apontado é a criação de grupos nas redes sociais, o que demanda diuturnamente o monitoramento do docente, com a emissão de um rápido feedback.
Uma determinação legal no ano de 2016, sob a justificativa de manutenção da transparência do serviço púbico, impôs que todos os processos devem ser iniciados e concluídos via sistema eletrônico. Isso, além de demandar tempo para capacitação, tornou o processo de análise e parecer muito mais moroso, já que há imposição de leitura do processo – às vezes, de centenas de páginas – na tela do computador, o que dificulta o ir e vir a determinadas páginas, atividade realizada com menor rapidez no meio eletrônico.
Nas instituições privadas, os professores também vivem o desgaste da intensificação do seu trabalho, em situação e condição diferenciadas. A maioria é horista e, nessa condição, se vê obrigada pela sobrevivência, tanto pessoal como profissional, a assumir uma carga horária de 20 a 40 horas semanais em sala de aula. Eles são pressionados a publicar e, para isso, devem desenvolver pesquisa e/ou realizar projeto de extensão, pois de outra forma não teriam de onde retirar dados para publicação, mas a instituição privada, na maioria das vezes, não paga horas de trabalho para o professor se dedicar à pesquisa e/ou à extensão.
Os docentes que têm o privilégio de receber uma carga horária para a pesquisa e a extensão são geralmente aqueles contratados em regime de dedicação integral e/ou professor de tempo integral e, além do ensino, da pesquisa e da extensão, se comprometem com as questões relativas à gestão, geralmente como coordenadores de cursos ou outras coordenações gerais relacionadas ao curso. Esses professores vivem sob as exigências do processo avaliativo dos órgãos reguladores do processo de avaliação sistêmica que autorizam ou não a criação e a manutenção de cada curso superior de graduação no âmbito de instituições privadas, como a Capes e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Além de todas as questões legais exigidas e as determinações dos órgãos de classe (sindicatos), esses professores vivem todo o processo de intensificação do trabalho quase que de forma natural, uma vez que, a forma mais segura de se manterem no emprego é apresentando resultados, pois não existe estabilidade.
Entre as pesquisas realizadas sobre as consequências da intensificação do trabalho docente na educação superior, vale destacar o capítulo “Trabalho docente no stricto sensu: publicar ou morrer?”, de Lucídio Bianchetti e Ana Maria Netto Machado (2009), para os quais o prolongamento e a intensificação da jornada de trabalho para atender às exigências da pós-graduação têm comprometido a vida pessoal e a atuação científica do docente. Nesse sentido, os autores chamam a atenção para palavras e expressões que se tornaram comuns e frequentes na academia:
Produtividade, competição, produtivismo, burnout, doenças do trabalho, assédio moral, sobrecarga, intensificação, angústia, barateamento, mediocrização, classificação, ranqueamento, punição, Lattes, pressão, publicação, Qualis, cansaço, desconforto, doença, estresse, redução de tempo, tempo médio de titulação (TMT) etc. (Bianchetti; Machado, 2009, p. 50).
Tais palavras e expressões traduzem o sofrimento, a ansiedade e a insatisfação que a lógica mercadológica impõe ao exercício da profissão docente em um ritmo alucinante de trabalho. Não sobra tempo para o professor se dedicar à sua família, ter uma vida social e cultural saudável, se dedicar ao cuidado da saúde desenvolvendo uma atividade física, situação que se agrava por conta da desvalorização imposta à categoria dos profissionais do magistério.
Para colocar um ponto final no artigo, voltamos ao ponto inicial proposto no título: desenvolvimento profissional docente e intensificação do trabalho: viver ou sobreviver? As nossas reflexões nos levam a reafirmar nossas convicções de que na atualidade, em face das exigências impostas ao exercício da docência, o professor tem como sonho de consumo simplesmente um tempo para descansar, para ter uma vida familiar e social saudável, pois a intensificação do trabalho que lhe é imposta, agregada à necessidade de investimento no seu desenvolvimento profissional, na sua formação continuada e na produtividade científica restringem-lhe as possibilidades de respirar e viver fora da academia, tornando-se, assim, uma imposição para sua sobrevivência.
Fonte: Em aberto