Contrarreforma da previdência: essencial para quem?
16 de Novembro de 2016 às 09:21:40Ao caminhar no longo corredor de acesso ao embarque/desembarque no Aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek o passageiro (deputado, senador ou docente) necessariamente, é “recepcionado” por um enorme painel luminoso da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que informa: “Indústria – Essencial para o país. Reformar a Previdência Social – Essencial para a Indústria”.
Das ameaças anunciadas, a contrarreforma da previdência já indicada pelo governo do presidente Temer ainda não está formalizada ou ao menos como uma Proposta de Emenda à Constituição, um projeto público, ainda não foi dada a conhecer porque não se lhe encaminhou, formalmente, ao Congresso Nacional. O que temos até então, são declarações de autoridades do Estado em jornais e entrevistas aos meios de comunicação.
Do que sabemos, não se pode ter dúvidas de que as contra-reformas são projetos do grande capital para contrarrestar a baixa de seus lucros, ou nas palavras da CNI, sua agenda para sair da crise”. Também por este motivo, separar a contrarreforma da previdência da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, no Senado PEC 55 e do Projeto de Lei da Câmara Complementar (PLP) 257 agora no Senado como Projeto de Lei do Senado 54 e de tantos outros projetos e leis que a cada dia são anunciados, seria agir em conformidade e ao modo do Estado: fragmentar o ataque aos direitos dos trabalhadores para que tenhamos de escolher contra o que lutaremos, para dividir-nos sobre o que é mais importante e para garantir, por meio de variadas alternativas de legislação, que o objetivo esteja protegido e sem risco de ter sua aprovação obstaculizada.
Consoante à contrarreforma da previdência social, a PEC 55, sem realizar a alteração no direito, se aprovada já estabelece o congelamento do orçamento que garante o pagamento dos benefícios do Sistema de Seguridade Social. Congela os gastos sem congelar a arrecadação; de fato, como demonstramos a seguir, a arrecadação da quota parte que no plano imediato diz respeito aos trabalhadores, pretende-se aumenta-la.
Os diagnósticos dos Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), foram levados a termo pelo Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social. Seus participantes, suas atribuições e o período de vigência do Fórum foram estabelecidos por dois Atos Normativos, a saber:
1) Decreto 8.443 de 30 de abril de 2015;
2) Portaria 21 de 1º de setembro de 2015.
O relatório foi apresentado sob a forma de 194 slides, em maio de 2016, no governo da presidente Dilma Rousseff, e deve-se, à partida, mencionar: não há nele qualquer registro aos superávites do orçamento da Seguridade Social demonstrados em vários estudos acadêmicos e técnicos e já sobejamente conhecidos. A perspectiva assumida pelo Grupo Técnico de Previdência parte da suposta existência de déficit para a formulação de suas conclusões.
No diagnóstico novamente e de resto em estreita convergência (coincidência?) com documentos produzidos pelo Banco Mundial desde 1994, afirma-se a proposta de contrarreforma da previdência apresentada pelo governo de Michel Temer.
Após as contrarreformas materializadas nas Emendas Constitucionais n. 20/1998 do governo de Fernando Henrique Cardoso e da 41/2003 do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e das várias regulamentações no campo da previdência no governo de Dilma Rousseff, pode-se afirmar: as contrarreformas foram dirigidas, respectiva e prioritariamente, nos diferentes governos, ao RGPS sob FHC, ao RPPS sob Lula e por regulamentações infraconstitucionais contra ambos os regimes sob Dilma Rousseff; no, governo de Michel Temer parece haver a disposição de aprofundar a retirada de direitos e dificultar ainda mais o seu acesso pelos trabalhadores que estão nos dois regimes. Dito de modo diverso, o governo atual pretende sintetizar em uma mesma contrarreforma a destruição dos direitos previdenciários de todos os trabalhadores e de uma só vez.
Os oito (poderão ser mais) eixos da contrarreforma, já anunciados e resultantes do diagnóstico acima mencionado, são:
- Financiamento da Previdência Social: receitas, renúncias e recuperação de créditos: o diagnóstico de que é preciso mais receitas para a previdência social teria razão de ser se fosse para ampliar o escopo de trabalhadores protegidos pela política de previdência social e para elevar os valores das aposentadorias e pensões; na perspectiva do governo Temer, planeja-se: para o RGPS: passar a cobrar de aposentadas/os e pensionistas contribuição ao INSS. Trata-se aqui de implantar para os dois regimes o que tenho denominado de “isonomia às avessas” porque constrói a igualdade de direitos e deveres rebaixando todos ao direito mais básico e elevando a todos ao dever mais exigente. Para o RPPS: aumentar a contribuição dos trabalhadores empregados no Estado (União, Unidades Federativas e Municípios), sobre os proventos totais de 11% para 14% ou 20%; aqui, além da luta de classe e defesa de direitos dos trabalhadores, a determinação do valor das alíquotas dependerá dos compromissos assumidos por Temer com governadores e prefeitos ”na negociação da dívida” de cada um dos entes com a União (PEC 55 – anterior PEC 241 – e PLS 54 – antigo PLP 257). Entretanto, parece-me que as negociações resultariam satisfatórias para todos os governantes se a unificação desejada implicasse em estabelecer um único índice de contribuição para toda a força de trabalho empregada pelo Estado. Ora, para conseguir a unidade entre os 2.080 regimes existentes no país este índice só poderia ser maior do que o mais alto praticado atualmente. A contribuição da força de trabalho tem variações consoante aos diferentes entes e assim, para responder positivamente ao conjunto de governadores e prefeitos haveria que se elevar a contribuição dos trabalhadores para um índice que, atualmente, esteja acima dos 14%. Sobre as renúncias, isenções e sonegações, medidas relativas aos capitais que as praticam, nada foi anunciado.
- Demografia e idade mínima das aposentadorias: o debate em torno da maior conquista da humanidade alcançada, sobretudo nos últimos 70 anos, tem sido tratada pelos governos dos capitais como um óbice à realização dos direitos sociais. Do aumento da produtividade do trabalho, em muito superior ao aumento da expectativa de vida, não há sequer uma “lembrança” da parte dos Grupos Técnicos, capitais e governos de que a produtividade é um dos componentes da equação relativa à contribuição do trabalho. Aqui, a proposta já anunciada pelo governo de Temer e Meirelles é a de elevação da idade mínima de aposentação para 65 anos de idade. Sabe-se, pelas mesmas pesquisas do IBGE utilizadas pelos governantes, que em muitas Unidades Federativas a expectativa de vida é de poucos anos além dos 65 (Maranhão e Alagoas: 66 anos e em Sergipe e Pernambuco: 68 anos para homens); a atuária, a estatística e o conhecimento em geral postos a serviço de encontrar a melhor condição etária para ou não devolver aos trabalhadores e trabalhadoras seus anos de produção de riqueza social ou aproximar-lhes o alcance do direito, o máximo possível, do momento da morte; é disto que se trata!
- Extinguir as diferenças nas regras entre homens e mulheres: neste item, estima-se aprofundar e “democratizar” o raciocínio que move a Lei 13.135 de 17 de junho de 2015 que estabelece regras duríssimas para o alcance de pensões. Em um país de permanência do machismo sabe-se que casamentos com maior diferença de idade entre os cônjuges quase sempre implicam em mulheres mais novas que se casam com homens de idade mais avançada. Disciplinar a aposentadoria a partir da idade de um dos cônjuges é carregar para a lei os traços mais moralistas e abjetos da sociedade porque, dentre outras barbaridades e dirigidas seletivamente aos mais pobres, implicitamente, atribui como motivador de uniões com significativa diferença de idade, interesses diferenciados para a efetivação da vida em comum. Neste processo, ainda uma vez, aos trabalhadores e trabalhadoras pobres o Estado arvora-se determinar com quem se pode contrair relações; aos ricos e homens, supostamente, as uniões com grande diferença de idade atestam e conferem-lhe, ao mais poder e diz de sua virilidade. De sua conta bancária, seria deselegante e inoportuno registrar, pois afinal, só as mulheres e, sobretudo, as muito pobres pensariam em se “arranjar” com as milionárias aposentadorias de homens mais velhos portadores de benefícios de, no máximo, dois salários mínimos pagos pelo RGPS.. Ademais, o que o título deste ponto 3 enuncia é o propósito de suprimir os êxitos da luta das mulheres em fazer reconhecer na lei as nossas múltiplas jornadas de trabalho (cuidar da casa, dos filhos, estudar e trabalhar) e, por isto, alcançar a aposentadoria com exigências menores, de idade e de tempo de contribuição. A (i)razão deste ataque aos direitos das mulheres ampara-se nos dados demográficos que tem apontado nossa ligeira superioridade em expectativa de vida. Está em curso, uma investida seletiva e enérgica aos direitos das mulheres. Silenciosamente, sob a contrarreforma da previdência, desvaloriza-se o trabalho privado realizado no ambiente doméstico e legitima-se, na lei, as múltiplas formas de violência que vitimam mulheres por subtrai-nos o reconhecimento por tarefas tão pesadas que, com enorme frequência compõem o adoecimento e as desavenças entre casais.
- Regras das pensões por morte: além de estabelecer o mencionado no item três, trata-se de estender para pensionistas do RGPS e para os demais RPPS das Unidades Federativas e dos Municípios, regras que já estão em execução no RPPS da União desde o ano de 2003, cuja a de maior gravidade é a aplicação de um redutor nas pensões para o/a cônjuge sobrevivente.
- Previdência rural: financiamento e regras de acesso: no RGPS, dentre os trabalhadores e trabalhadoras com menor nível de proteção previdenciária e que, ao mesmo tempo, sofrem profunda degradação de sua força de trabalho estão os/as trabalhadores rurais e mais recentemente as/os trabalhadoras domésticas. No conjunto da classe trabalhadora, talvez estas categorias profissionais são as que mais prematuramente principiam a trabalhar e infrequente, sem registros trabalhistas e sem qualquer garantia e proteção da parte do patronato. Não obstante, apocalípticos formuladores das contrarreformas as consideram – a tais categorias profissionais – trabalhadores e trabalhadoras que de modo significativo contribuem para a geração de déficits previdenciários, “dadas as suas poucas e baixas contribuições”. Nesta direção, importa saber que inexiste o déficit e que a previdência por repartição implica, ao menos para nós trabalhadores e trabalhadoras, cultivar o cuidado e a solidariedade intraclasse e não permitir que o discurso usurpador de nossas aposentadorias, guie-nos na acusação de uns e outros como o mote legitimador do rebaixamento dos direitos previdenciários do conjunto da classe trabalhadora. Ademais, a ex-Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a Senadora Katia Abreu, defendeu a continuidade de isenção de impostos para os exportadores de grãos. Ao mesmo tempo em que a contribuição do agronegócio tem sido tratada com leniência por diferentes governos, aos trabalhadores rurais reserva-se o aumento da alíquota e desmoralização ao responsabiliza-los por inexistentes deficits previdenciários.
- Regimes Próprios de Previdência: a Constituição da República Federativa do Brasil (art. 40) e a Lei 9.717/1998 disciplinam a existência de RPPS. O diagnóstico elaborado pelo Fórum, identificou existirem 2.080 regimes, deste modo contabilizados: 01 da União, 27 de Unidades Federativas e Distrito Federal e 2052 de Municípios, incluídas as capitais. Quando da elaboração da Constituição Federal em 1988, aos trabalhadores interessava-nos a construção de um sistema previdência único. Aos capitais e seus governos, ao terem claro: 1) a força que trabalhadores unidos em um único sistema alcançaria em termos de luta e reconhecimento de direitos igualitários; 2) movidos por interesses particularistas de gestão da massa de recursos recolhidas em cada RPPS e gerida pelo executivo local, derrotaram a proposta dos trabalhadores e possibilitaram a construção de mais de dois mil regimes próprios para a força de trabalho empregada nos diferentes momentos do Estado. Atualmente, com direitos e deveres diferenciados e alcançados em também diferentes momentos e conjunturas da luta de classe em cada Município, Estado ou na União, tornou-se importante aos capitais que esta massa de recursos seja centralmente administrada. Possivelmente, o “convincente argumento” a ser utilizado junto aos executivos locais (Estados e Municípios ) será em torno da negociação das dívidas com a União. No reforço deste argumento, não esquecer o PLS 54 e a PEC 55 acima mencionados.
- Convergência dos sistemas previdenciários: a convergência de todos os sistemas (RGPS e RPPS) em um único sistema previdenciário também foi uma bandeira da classe trabalhadora nos anos anteriores e durante a elaboração da carta constitucional de 1988. Igualmente nesta construção a classe trabalhadora amargou derrota e o texto constitucional estabeleceu diferentes regimes para a classe trabalhadora, consoante a quem vendesse a sua força de trabalho. Atualmente, como enfatizamos no item anterior, interessa à União, concentrar esta multimilionária fatia do fundo público – outro modo de dizer da riqueza socialmente produzida por trabalhadores – sob um único controle; provavelmente, naquele que é mais eficaz para transferir aos capitais portadores de juros, como remuneração de títulos da dívida pública: o ente federal. Aos governos e capitais, tornou-se possível, neste momento e pela força de um golpe parlamentar como instrumento de “equação” da crise econômica, liberar estes recursos para as necessidades dos capitais. A avaliação de que a classe trabalhadora vive um momento de derrota nas suas lutas, não é equivocado; equivocado, da parte da burguesia e de seus governos é acreditar que esta derrota seja um traço perene.
- Desvincular os benefícios pagos no RGPS do Salário Mínimo (SM): neste regime, apenas o valor inicial de ingresso no sistema é referenciado no Salário Mínimo, que é o valor equivalente do benefício previdenciário apenas para os que recebem um salário mínimo. As aposentadorias com valores maiores do que um salário mínimo, não são pautadas em salários mínimos no momento de seu recebimento. Entretanto, todas as vezes em que há reajustes e correções nos valores do SM ocorre a correção dos valores pagos aos benefícios da Seguridade Social. Para os capitais, mas este é um seu projeto antigo, os valores dos benefícios devem ser, tal como recomenda o Banco Mundial (1994), “suficientes apenas para combater a indigência na velhice”. O que é suficiente dependerá sempre da luta de classe em cada país e em cada conjuntura. Comummente, aos capitais e governos, no Brasil, tal valor não seria nada além do que meio salário mínimo ou menos.
Uma última anotação: a necessidade dos capitais no atinente à previdência, tem sido no Brasil de, ao menos duas ordens, simultâneas e não excludentes entre si: diminuir a previdência social, pública, para assim aumentar o espaço da mal denominada “previdência complementar”, uma não-previdência que na verdade é um mecanismo do mercado de capitais; e, disponibilizar as somas providenciarias sob o controle do Estado como recursos para remunerar os proprietários dos títulos públicos.
Em dezenas de debates após expor o que vem nestas páginas, ao ser indagada se “tudo isto está dado e será impossível de alterar” tenho respondido: como em tantos anos, quando a classe trabalhadora se levantou, pareceu-lhes aos burgueses, quase sempre, que a toupeira (as lutas da classe trabalhadora) que, silenciosamente, cava no subterrâneo já estivesse morta e putrefata. A eclosão de movimentos e de lutas de classe não ocorre , após mais de uma década de apassivamento, no exato momento em que as lideranças chamam-na da janela para que volte a lutar. Contudo, ao contrário, do que pensam os coveiros da toupeira, ela continua a cavar e a esburacar o solo mais profundo para fazer ruir, um dia, toda a superfície.
Fonte: Blog Junho