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PEC 241: de volta à terapia de choque

31 de Agosto de 2016 às 11:20:04

Quando o economista Milton Friedman viajou ao Chile do ditador Augusto Pinochet em 1975, apresentando-se como uma espécie de médico prescrevendo um receituário a um “país epidêmico”, ele clamava por um “tratamento de choque” para os problemas econômicos chilenos. Alguns anos depois, o primeiro-ministro Egor Gaidar foi um dos artífices da transição russa a um capitalismo mafioso, conversão que ele chamava de “terapia de choque”. A jornalista americana Naomi Klein, em seu livro de 2008, mostrou como a adoção das políticas neoliberais na maior parte do mundo esteve indispensavelmente associada a um aumento exponencial da repressão estatal, ou a governos ilegítimos.


A Proposta de Emenda Constitucional número 241, que tramita em regime especial na Câmara dos Deputados, é a mais recente arma de choque da terapia administrada em quase todas as partes do globo que viveram crises capitalistas nas últimas décadas. Talvez não seja casual que ela esteja em vias de ser aprovada por um governo ilegítimo, desobrigado de aplauso popular para se manter no poder.


O que é a PEC 241/2016


A PEC 241 determina explicitamente a proibição de qualquer aumento real nos investimentos estatais em direitos sociais, políticas públicas e seguridade social por vinte anos no Brasil. Alterando tecnicamente os critérios pelos quais os gastos sociais são norteados, ela cria um “novo regime fiscal” para o país, delimitando a correção desses gastos sociais à taxa de inflação calculada pelo Banco Central no ano anterior. Atualmente, os gastos públicos em áreas sociais como saúde e educação são regidos por Emendas Constitucionais que estabelecem destinação escalonada de recursos, estabelecidos alguns mínimos, e podendo crescer conforme a arrecadação. Com a PEC, deixará de existir um mínimo de gastos sociais, e em seu lugar entrará um teto, um limite máximo cujo descumprimento será penalizado com ainda mais restrições orçamentárias para custeio de serviços públicos.


Em termos orçamentários, a PEC 241 é uma verdadeira volta ao passado. Desde os anos 1940, visando eficiência nos gastos, os Estados capitalistas modernos construíram o chamado orçamento-programa, em contraposição ao orçamento incremental – caracterizado quando a definição dos montantes de recursos a serem alocados para os programas, ações, órgãos ou despesas se realiza mediante a incorporação de acréscimos marginais em cada item de despesa, mantendo-se o mesmo conjunto de gastos do ano anterior, ou com ajustes muito pequenos. Com o modelo orçamentário incremental, defendido pela PEC, as opções e prioridades estabelecidas no passado tendem a permanecer inalteradas ao longo do tempo, e o orçamento fica impedido de fazer uma reavaliação quanto a novas necessidades e prioridades da sociedade.


Isso significa que se houver, hipoteticamente, algum município ou estado da federação que decida, digamos, dar aumento real de salários aos servidores de qualquer área, isso será proibido, e, caso haja insistência na medida, haverá punições, como a proibição de realizar novos concursos públicos ou de progressões na carreira dos servidores. E, mesmo que a economia do país volte a crescer e a arrecadação aumentar, não poderá haver aumento na despesa em quaisquer áreas sociais.


A tramitação da PEC 241 veio articulada com o Projeto de Lei Complementar n. 257, apresentado ainda no governo Dilma, que vincula a negociação das dívidas dos estados ao corte de gastos com pessoal. Aprovado na Câmara, esse projeto já permite a redução orçamentária para 2017. Também encontra-se articulada com outros projetos como o PLS 389/2015; o PLS 204/2016; e a PEC 31/2016, ambas em trâmite acelerado no Senado. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o ano que vem, já elaborada nos parâmetros da PEC 241, foi aprovada na madrugada do último dia 24 de agosto.


Sintomaticamente, a PEC não prevê limite algum para o maior gasto público atualmente vigente no Brasil: o pagamento da dívida externa e interna, que já consome atualmente quase metade do orçamento federal. Na justificativa da PEC, a prioridade no pagamento da dívida é de fato ressaltada em diversos trechos. Esse ponto deixa claro que o objetivo central não é exatamente o equilíbrio fiscal – o qual poderia ser alcançado por meio de outras vias, como através de uma reforma tributária com imposto progressivo – mas sim, o bolso dos rentistas brasileiros e estrangeiros que aplicam nos títulos da dívida. Aqui também entende-se a exceção feita no §6 do artigo 102 da PEC, excluindo do congelamento as “despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes”: tal como na preparação para as grandes privatizações dos anos 1990, o Estado aumenta o capital público a ser entregue nas mãos privadas. E a segunda principal forma de repasse de dinheiro público para a esfera privada – investimento estatal seguido de privatização – segue incólume.


O testa-de-ferro do projeto no Congresso, eleito presidente da comissão especial que analisará a PEC 241, é o deputado Danilo Forte, do PSB do Ceará. Forte, que votou a favor da admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara em nome dos “cearenses de bem” e do ajuste fiscal, tem em seu currículo a autoria do projeto que criou a  Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). No dia 09 de agosto, em meio as Olimpíadas e sem alarde na grande mídia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara votou a favor da admissibilidade da PEC 241. Agora o próximo passo é a votação no plenário da Casa, onde, para ser aprovada, ela precisa apenas de 308 votos favoráveis – menos do que o que foi necessário para o impeachment de Dilma Rousseff.


A proposta é co-assinada pelo atual Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, Dyogo de Oliveira, o pulha que assumiu no lugar de Romero Jucá (PMDB) após a revelação das escutas constrangedoras do primeiro escolhido por Temer, com passagem em diversos cargos durante o mandato de Rousseff. Mas seu verdadeiro autor é Henrique Meirelles, atual ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central (2003-2011), histórico presidente do Bank Boston, intelectual orgânico com bom trânsito em todos os partidos políticos, membro do Instituto Millenium e sócio de diversas empresas e bancos. Aluno, nos anos 1980, do tradicional programa de formação para líderes corporativos de Harvard, Meirelles é do tipo que não se constrange em tecer elogios públicos a figuras como Harold Geneen, o diretor, até o início dos anos 1970, da ITT, empresa envolvida até o pescoço no golpe militar que impôs a ditadura chilena em 1973. Na justificativa da PEC, assinada por Meirelles e Oliveira, somos tranquilizados de que


Trata-se, também, de medida democrática. Não partirá do Poder Executivo a determinação de quais gastos e programas deverão ser contidos no âmbito da elaboração orçamentária. O Executivo está propondo o limite total para cada Poder ou órgão autônomo, cabendo ao Congresso discutir esse limite. Uma vez aprovada a nova regra, caberá à sociedade, por meio de seus representantes no parlamento, alocar os recursos entre os diversos programas públicos, respeitado o teto de gastos. Vale lembrar que o descontrole fiscal a que chegamos não é problema de um único Poder, Ministério ou partido político. É um problema do país! E todo o país terá que colaborar para solucioná-lo.


Ou seja, não fosse suficientemente amarga uma restrição desse porte, o órgão encarregado de deliberar como esse limite orçamentário vai ser gasto será esse mesmo Congresso Nacional, em sua legislatura mais conservadora e pró-empresarial desde o fim da ditadura.


Uma era glacial para os direitos sociais


Ao contrário do que pregam os defensores do eufemístico “ajuste fiscal”, o resultado dessa PEC não será apenas um “congelamento” dos serviços tal como eles se encontram, como se tudo fosse continuar mais ou menos como está. Isso porque, como a demanda pelos serviços públicos só tende a aumentar, o não-aumento do financiamento implicará numa queda drástica de sua oferta e qualidade.


Tomemos como exemplo o serviço público de saúde, do qual dependem, de maneira exclusiva, oito em cada dez brasileiros. Segundo os números atuais do IBGE, nos próximos vinte anos a população idosa brasileira vai dobrar, sem contar o crescimento populacional vegetativo normal, calculado em 9%. Isso exigiria um aumento real do valor per capita destinado para a saúde pelo menos proporcional ao gasto de hoje – o qual já está bem aquém do suficiente. Se a PEC 241 for aprovada, daqui a vinte anos, em 2037, o SUS estará recebendo o mesmo volume de recursos aplicado hoje, em 2017, com apenas uma correção monetária, calculada de acordo com o índice de inflação do ano anterior.


Segundo estimativas do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), a PEC representará retração de R$ 654 bilhões nos recursos para a saúde, representando um golpe de morte de um SUS que praticamente já respira por aparelhos. A projeção desses órgãos é que, pela regra da PEC, a saúde receberá R$ 2,82 bilhões a menos já em 2017, R$ 31 bilhões a menos em 2026, chegando a R$ 59 bilhões em 2036. No período, a redução ano a ano em relação à regra atual acumularia R$ 654 bilhões. Um presente para o oligopólio gangster dos planos de saúde, que não vê a hora de garantir clientes desesperados para seu “plano de saúde popular”, já defendido pelo Temerário.


De acordo com outro alarmante estudo, se a PEC 241/16 estivesse em vigor desde 2003, por exemplo, teriam sido perdidos R$ 318 bilhões na saúde, como mostra a tabela.


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Fonte – assessoria do Inesc.


Na educação, o cenário não é menos calamitoso. De acordo com projeções de um estudo técnico do próprio Congresso Nacional, a educação pública deve perder R$ 58 bilhões até 2025, o que, sem sombra de dúvidas, inviabilizará o cumprimento das metas mínimas do Plano Nacional de Educação (PNE). Como alerta o atual reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Leher, a PEC 241 determinará inevitavelmente o fim da gratuidade das universidades públicas, além de um golpe mortal na pesquisa cientifica, que no Brasil é basicamente feita no âmbito das pós-graduações dessas universidades. Segundo estatística da seção do DIEESE do ANDES-SN, se a PEC estivesse em vigor entre 2002 para 2015, o orçamento da educação teria acumulado perdas de R$ 268,8 bilhões – um corte de 47% em tudo o que foi investido em educação nesses 14 anos.


Para a imensa maioria da população, o congelamento previsto na PEC 241 significará minguar num deserto glacial de direitos, impondo aos trabalhadores a obrigação de gastar uma parte substancial de seus parcos salários para pagar serviços antes prestados pelo Estado, num cenário de aumento do desemprego e das perdas salariais. Para o capital, ele vai escancarar comportas para a atuação obscenamente lucrativa em setores até então semi-virgens para a acumulação. A privatização massiva dos serviços públicos será facilitada pela terceirização completa da atividades-fim; e quiçá, pelo enterro definitivo da CLT com as reformas trabalhista e da previdência, que, para delírio do capital, podem ser aprovadas até 2017.


Reorientação estatal


A subversão do princípio constitucional de 1988 que garante a autonomia do orçamento da seguridade social – cujo comprovado superávit escondem os tecnocratas de plantão – sofreu um primeiro grande golpe com a aprovação, ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Apresentada como um Projeto de Lei Complementar, e aprovada no ano 2000, essa lei pela primeira vez condicionou os gastos estatais ao equilíbrio fiscal. Juntamente com o aumento e a extensão da Desvinculação de Receitas da União (DRU), outro mecanismo perverso que foi aceito e aplicado pelos governos Lula e Dilma – o processo em curso é a culminação da liquidação dos direitos sociais inscritos na Constituição de 1988.


É possível que, diante de alguma resistência, seja feita alguma alteração no texto da PEC que a torne mais palatável, como algum aceno simbólico para pastas como saúde e educação, ou a redução de sua extensão para menos de 20 anos. Mas o importante a notar é que não se trata mais de cortes orçamentários circunstanciais, ainda que grandes, como vinha sendo feito em todos os governos encabeçados pelo PT. Agora, trata-se de cravar na lei máxima do país a submissão dos gastos sociais ao equilíbrio fiscal, aprofundando qualitativamente uma orientação contra-reformista no Estado brasileiro.


Em todos os países em que foram aplicadas, as chamadas políticas de “austeridade” resultaram em aprofundamento do desemprego e do desespero social. Se isto ocorreu em países que saíram de um patamar de proteção social significativamente melhor, não é difícil imaginar o que sucederá num país que nunca esteve nem perto de conhecer sistemas públicos de saúde e educação de qualidade, e detentor de vários recordes mundiais de desigualdade social.


Com o retorno da “terapia de choque”, a única resposta possível é um grande movimento antimanicomial.


 


Fonte: Blog Junho